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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Ser outro, ser imigrante

Já que o Pequenas Felicidades mudou de lugar, a inspiração de hoje é outra...

Estava lendo este texto do José Castello e me identifiquei com essa sensação de tentar me livrar de parte de mim neste processo de imigração.

Esta dicotomia entre dois "eus" fica bem evidente na vida daquele que emigra, embora esteja presente na vida de todos nós. Temos o "eu" que fica e o que vai. O que "somos" e o que "queremos ser". Vamos sempre conviver com essa permanente "rachadura", ela é quem cria o que quer que seja que apresentamos momentaneamente como nós mesmos...


Para quem gosta de filosofiar, sugiro a leitura!


O desejo de ser outro

(daqui)

Uma grande amiga, M., me conta uma inspiradora história a respeito dos Vikings - os navegadores nórdicos que exploraram os mares do norte a partir do século VIII. Diz a
história que, sempre que abandonavam suas terras geladas para aportar em regiões de clima mais ameno, eles tratavam de queimar seus barcos, para não ceder ao desejo de
retornar. Para não ceder a esse desfiladeiro interior _ imenso buraco _ a que chamamos de saudade.

A história fala da interminável divisão que nos caracteriza como humanos. Somos
sempre dois _ pelo menos dois. O Um não passa de uma ilusão a que nos apegamos para
sobreviver e nos apaziguar. Como os Vikings, temos o hábito de "queimar" partes de nós mesmos, para que elas não retornem e não nos incomodem. Contudo, mesmo destruídas, continuamos a carregá-las em nosso interior. Em algum lugar elas permanecem e, ainda que desfiguradas, nos ajudam a viver. Não só nos infernizam, embora façam isso também. Nos levam além de nós mesmos.

Pensei nessa cisão interior, e também na história que me foi relatada por M., enquanto relia "Despair" ("Desespero"), romance curto, mas inesquecível, do escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977) - um de seus relatos que mais aprecio. Nabokov o escreveu em russo, no ano de 1932, em Berlin. Só o publicou, ainda na Alemanha, quatro anos depois. Em 1937, traduzida pelo próprio autor, surgiu em Londres a primeira edição inglesa. Eu o leio em uma edição espanhola ("Desasperación", tradução de Enrique Murillo), publicada em Barcelona pela Alfaguara.

Vladimir Nabokov nos narra a história de Hermann, um decadente fabricante de chocolates que um dia, em plena rua, e para seu horror, tropeça em um vagabundo que é seu duplo perfeito. À beira da falência, desesperado, o empresário decide assassinar seu duplo para morrer em seu lugar. Com isso, pretende receber um seguro que o salvaria. O plano criminoso, contudo _ como sempre acontece nos relatos de Nakokov _, não passa de um suporte para uma infinidade de reflexões existenciais e jogos estéticos. Eles sim bem mais precisos.

O que agita a alma de Hermann não é o crime, ou a possibilidade de salvação financeira, mas a existência do duplo miserável. Matá-lo é, de certa forma, queimar o barco _ o corpo _ que o sustentou e transportou até aquele momento de sua vida. É tornar-se outro: não só alguém que escapou da falência, mas alguém mais completo, que já não sofre da presença de um duplo para dividi-lo e infernizá-lo. A idéia do crime não passa, portanto, de um alibi para estancar um sofrimento: o da cisão interna. De uma luta interior _ como a dos Vikings que, abrigados em terras mais amenas, precisavam queimar seus barcos para estancá-la. Estranha solução: para livrar-se do outro, tornar-se um outro.

A literatura (e não só Nabokov) nos oferece infindáveis exemplos dessa batalha secreta na qual só a imagem de um incêndio se assemelha à de uma salvação. Penso, imediatamente, em um conto do argentino Roberto Arlt (1900-1942) _ outro escritor que estou sempre a reler. Trata-se de "Uma aula de ginástica" e relata a história de Simoens, um telegrafista que, na mesma esperança de se tornar um outro, se matricula em uma academia. Uma esperança, a propósito, cada vez mais disseminada em nossos dias, dominados pela fome e pela insatisfação. Não se trata só de queimar calorias, ou de eliminar gorduras, mas sim de queimar um corpo _ como planeja também o Hermann de Nabokov _ para colocar outro em seu lugar.

"Dentro de um ano serei outro homem. Terei outro brilho nos olhos. Outra pele. Outros braços", consola-se Simoens, enquanto sofre com os exercícios dirgidos por seu severo instrutor. Exausto, aborrecido, imagina como seria esplêndida a existência de máquinas dentro das quais nos acomodaríamos para _ imóveis, sem nada sofrer _ nos exercitar. Elas, na verdade, fariam os exercícios em nosso lugar. Seriam, também, o nosso outro. "Mas, nesse caso, a vontade não se educaria", admite o telegrafista. Não se trata, apenas, de substituir um corpo, mas de trocar de alma.

Quando, encerrada a aula de ginástica, Simoens retorna ao vestiário, treme como se estivesse com febre. "Um furor surdo sobe de sua carne embriagada de movimentos". Vai para o banho. Precisa consolar-se e resistir. Já na rua, sempre o mesmo homem apesar dos músculos que lhe doem apontando o sonho de um segundo Simoens, ele repete pra si mesmo: "Dentro de um ano serei outro... Dentro de seis meses serei outro. É preciso resistir". Consola-se pensando em sua mulher: "Que cara ela fará quando me encontrar transformado?"

Em seu belo conto, Roberto Arlt retrata, com simplicidade, a presença desse duplo que, ao mesmo tempo, nos atrai e nos importuna. Vejam como é difícil! Simoens persegue o seu. Hermann, que o encontrou, deseja exterminá-lo. Nunca estamos satisfeitos. A própria condição dupla desse desejo reafirma sua existência. Talvez por isso escritores como Nabokov e Arlt me interessem tanto. Escritores que me fazem pensar. Escritores (duplos) que, durante a leitura, pensam em meu lugar. Um pouco como a máquina de ginástica imaginada por Simoens? Não: porque sou levado a pensar também.

Escritores filósofos? O próprio Hermann, atordoado por suas dúvidas, me fornece a resposta: "A filosofia é uma invençaõ dos ricos. E tudo o mais também não passa de invenção: a religião, a poesia..." Elas não estabelecem caminhos para a existência, não os descobrem, limitam-se a inventá-los. Apontam para a força da imaginação, que nos duplica e nos faz avançar. É preciso imaginar um outro para desejar matá-lo. É preciso projetar-se no outro lado (mais ameno) dos mares, para desejar não retornar.



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